Jair Bolsonaro confirmou a pretensão de transferir do Ministério da Economia para o Banco Central a estrutura do Coaf, responsável pelo monitoramento de transações bancárias suspeitas. "O que nós pretendemos é tirar o Coaf do jogo político", declarou o presidente. A alegação é estreita e ofensiva. É estreita porque não consegue esconder a óbvia intenção de impor uma trava ao órgão que varejou as contas atípicas do primogênito Flávio Bolsonaro. É ofensiva porque parte da presunção de que o Brasil é um país de bobos.
Vale a pena relembrar o passado recentíssimo. Ao tomar posse, Bolsonaro editou uma medida provisória para reorganizar a Esplanada dos Ministérios. Reduziu o número de pastas de 29 para 22. E promoveu ajustes como a transferência do Coaf da Economia, comandada por Paulo Guedes, para o Ministério da Justiça. Alegava-se, então, que o órgão revelara-se valioso no desmonte de esquemas como o mensalão e o petrolão. Sergio Moro seria, portanto, a pessoa ideal para potencializar o Coaf, reforçando-o.
Numa parceria com o PT e seus satélites, o centrão derrubou a novidade na Câmara, devolvendo o Coaf à Economia. Quando a MP chegou ao Senado, o governo jogou a toalha. Num instante em que seus aliados se equipavam para dar o troco no centrão, Bolsonaro enviou carta aos senadores pedindo que mantivessem inalterado o texto que saíra da Câmara.
O capitão sustentou que uma mudança exigiria nova votação dos deputados. O que colocaria em risco toda a reestruturação administrativa do governo, pois o prazo de validade da MP expiraria na semana seguinte. A carta de Bolsonaro foi avalizada por Sergio Moro e Paulo Guedes. Para acalmar os aliados, o presidente argumentou que Moro e Guedes tocavam pela mesma partitura. O titular da Ecomomia manteria inalterada a estrutura definida pelo colega da Justiça. Para começo de conversa, permaneceria no comando do Coaf o auditor fiscal Roberto Leonel, egresso da Lava Jato.
O que mudou desde então? Quase nada, exceto uma coisa: avançaram as investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro contra o senador Flávio Bolsonaro. Nascido de relatórios do Coaf, o caso ganhou ossatura a partir da quebra judicial dos sigilos do filho Zero Um do presidente da República e de personagens que o rodeiam, em especial o faz-tudo Fabrício Queiroz.
O Coaf farejou na conta do primogênito, por exemplo, 48 depósitos no valor de R$ 2 mil entre junho e julho de 2017, totalizando R$ 96 mil. Flávio declarou que a verba tem duas origens: rendimentos que obteve como empresário e a venda de um apartamento que teve parte do valor liquidado em dinheiro vivo. Os depósitos foram feitos no caixa eletrônico de uma agência bancária que funciona no prédio da Assembléia Legislativa do Rio, onde o agora senador exerceu o mandato de deputado estadual.
Segundo Flávio Bolsonaro o fracionamento foi necessário porque o caixa eletrônico do banco não aceita depósitos superiores a R$ 2 mil. Faltou explicar por que diabos a transação não foi feita no interior da agência, onde inúmeros caixas de carne e osso recebem depósitos integrais. Faltou também uma justificativa para essa estranha predileção pela forma mais primitiva de transferência de valores, em moeda sonante.
No mundo das pessoas convencionais, ninguém sai carregando grana graúda pelas ruas de uma cidade como o Rio de Janeiro. Noutros tempos, havia o bom e velho cheque. Hoje, existe a TED, sigla que identifica a 'Transferência Eletrônica Disponível'. Além da rapidez e da segurança, a TED oferece uma vantagem adicional: o nome do depositante aparece nos registros oficiais, reduzindo as chances de o Coaf enxergar indícios de má-fé e lavagem de dinheiro nas transações financeiras.
Além dos depósitos picados, o Coaf mencionou em relatório entregue ao Ministério Público o pagamento de R$ 1.024 milhão feito por Flávio à Caixa Econômica Federal. Segundo o filho mais velho de Jair Bolsonaro a cifra se refere ao financiamento para a compra de um apartamento. O mesmo imóvel que ele venderia depois por R$ 2,4 milhões —parte em dinheiro vivo.
Em entrevistas, Flávio recusou-se a exibir as suas "provas" sob a alegação de que a imprensa não é o foro adequado. Simultaneamente, pegava em lanças para transferir o processo para o Supremo Tribunal Federal. O ministro Marco Aurélio Mello negou-lhe, entretanto, o escudo do foro privilegiado. Mais recentemente, sobreveio o recurso em que o Zero Três pediu ao Supremo a suspensão das investigações, sob a alegação de que o Coaf quebrara o seu sigilo bancário. E o presidente da Suprema Corte, Dias Toffoli, em pleno recesso do Judiciário, deferiu o pedido em canetada individual. Pior: estendeu a suspensão todos os processos fornidos com dados do Coaf e da Receita.
Roberto Leonel, o homem de Sergio Moro no Coaf, ousou criticar a decisão de Toffoli numa entrevista. Foi como se cutucasse a família Bolsonaro com o pé para ver se seus membros mordem. E Bolsonaro decidiu acionar a mandíbula. Encomendou o escalpo de Leonal a Paulo Guedes, que enxergou na transferência do Coaf para o Banco Central um biombo de aparência técnica para disfarçar a guilhotina.
Qualquer pessoa pode engolir o lero-lero de Bolsonaro —"O que nós pretendemos é tirar o Coaf do jogo político"—, mas corre o risco de passar por paspalho. A justificativa foi apresentada pelo presidente na manhã desta sexta-feira, numa entrevista defronte do Alvorada. Ao lado do presidente, estava ninguém menos que Sergio Moro. De duas, uma: ou o ex-juiz da Lava Jato vestiu a carapuça de operador do "jogo político" do Coaf ou decidiu envergar o figurino de tolo.
A essa altura, Moro talvez fizesse um bem a si próprio se devolvesse a Bolsonaro a "carta branca" que recebeu do presidente ao ser convidado para o cargo de ministro da Justiça. Quanto a Bolsonaro, o ideal é que interrompesse o ciclo de hipocrisia. No limite, deveria confiar ao próprio Flávio Bolsonaro o controle das movimentações bancárias suspeitas. Chega de intermediários: 'Zero Um' para o Coaf.
Josias de Souza